escultura em papier marché da série Mi Frida* by Val Freitas
nada a fazer exceto assistir à solenidade da tarde caindo soberba sobre a cidade engolindo pensamento leveza e solidão. estaria ela pensando ainda naquele desenho esponjoso de vida não fosse a própria, interrompida assim, abruptamente.
ia mudar-se.
sentia náuseas pelo novo que fatalmente estava em seu caminho. exato como uma cigana velha previra em uma multifeira sobre acasos.
sabe como quando passa um carro por sobre um corpo magro pobre e triste...? assim.
porque só a alimentaram com mazelas em pequena, ela não concebia chamas azuis ou qualquer outra variedade no preto.
ou ainda um tom a mais na voz que lhe caísse bem e fosse macio, alegre por poupar-lhe diafanamente da sua precária, mas nunca sem graça devassa ou pudica vida.
ela ainda tinha seus próprios pássaros e com eles voava sempre aonde quisesse ver. os olhos estavam avariados, é bem verdade. culpa das tais cores distintas que sombrearam sua vida, mas não ceifaram a sua interna extensa medonha, e por que não, lúdica visão de mundo.
o único homem que amou - sabe-se que fora amor - falecera de propósito vítima do egoísmo mais antigo na humanidade - amara tanto a ele e só a ele mesmo - que nunca notou a pálida existência delazinha.
agora que completara quarenta e alguns anos com todos aqueles incríveis cardápios de dia-a-dia lacrimejados ano após ano, faria o que bem quisesse como sempre quis.
não saberia dizer ainda para onde ou com quem e não se quebraria com porquês.
estava pronta há muito com toda aquela vidazinha bem distribuída em pequenas e desengonçadas malas.
finalmente faria uso irrestrito dos melhores sorrisos colecionados ao longo de reveillons desde 1980.
para entender-se com qualquer brecha de vazio fantasiou-se outra vez de mulher sensual, aquele tipo que planejava ser, reunindo o máximo da alma levada àquele corpo pequeno, magricelo e endurecido pelo tempo,
desafiando-se a ficar muito sexy no seu único melhor vestido de lycra estampadinho pago em prestações nada suaves.
em meia hora embarcaria em um ônibus por 36 horas, para a cidade dos sonhos.
nunca mais seria um esse número ôco transeunte e infeliz.
que venha a cidade e uma nova ela.
totalmente gauche é a vida.
[e cada um a seu modo, temo o dito.]
4 comentários:
Hum... o que posso dizer se assemelha muito a uma vida que não quer ficar ali, parada, presa, imóvel em pensamentos nostálgicos. Essa mulher, que brota desse sensível e intenso texto, já riscou com unhas muitas paredes, já perdeu a conta dos devaneios que construiu, mordiscou amores e etcéteras mil.
Mas continua mirando a estrada. É! Essa mesma estrada para onde sustentamos a cabeça, girando em várias direções.
Sabe, Valzita, desejos não morrem, não! Eles parecem que ficam encobertos pelos intervalos cênicos aos quais nos submetemos.
Ela é gauche, sim, senhores e senhoras, e não quer ver seus próximos dias coagulados numa vã e leviana espera!
Beijos, querida, muitos beijos! Belo texto!!
Tá linda a escultura, alegre como você. Sobre o texto, você recebeu meu e-mail, não foi? Beijo grande
Fabrício amado: é isso. gauche o tempo todo. esse texto me fez sentir-me como uma intensa varanda, com cadeiras abertas.
beijo! :)
Heber amado: li e reli. você me cutuca. amo-lo.porque me entende e mantém a herança genética de alma, nossa loucura. beijos! :)
Hum, que linda a tua escultura de Frida com pássaros! As cores vibrantes, as asas, a sede de viver, a voracidade das almas intensas!... Abraços alados, querida.
Postar um comentário